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Das sutilezas do pensar analógico

Publicado no jornal "O Estado de S.Paulo", de 05 de dezembro de 1995.

O pensar cartesiano, ao qual ainda estamos arraigados e que diz respeito ao mundo das predicações, isto é, ao mundo dominado pelo poderio do verbal, pelo pensamento linear subordinativo e irremediavelmente estático e ao qual interessa uma história contada princípio, meio e fim, (e de preferência, um final feliz, ainda que saibamos todos de nosso destino trágico final) é, provavelmente, o principal entrave para a compreensão do pensar analógico. Pois este, diz respeito a um mundo em ação, isto é, a um mundo que é conjugado em "gerúndio", e ao qual dizem respeito as relações entre estruturas, que, em acontecendo, acabam por gerar significados.

Portanto, a ideia de maior ou menor acesso aos meios tecnológicos de ponta, bem como a idéia de destreza na manipulação dos mesmos, não deve estar vinculada às qualidades das produções. Estas se remetem aos modos internos com que os meios são montados. Falo de "metalinguagens".

O pensar de hoje, como prenunciado pela fotografia, no início deste século, nos apresenta uma visão de mundo, pautada por esquemas de associações. Montagens de linguagens, nas quais, a predominância do visual é evidente. No entanto, ela não subexiste só, independente, é necessário que esteja, inter-relacionada com outras formas de linguagens. E, cada uma destas formas, como se num processo de retro-alimentação, "interpreta" um tema original, à sua maneira, isto é, lhe confere feições que são próprias de seus estatutos. Assim, o mesmo texto/escritura teatral é contado e recontado, e, com freqüência "recortado", em forma de encenação dramática, radiofônica, televisiva, vídeo-folhetinesca, cinematográfica ou videográfica, de acordo com os traços específicos de cada um destes códigos. O veículo, portanto, atua como fator determinante das feições significativas de uma ação e esta, se funda nas suas próprias funções construtivas. Entender este novo modo de "raciocínio", determinado pela eclosão sempre possível das imprevisibilidades, é meio caminho andado para a compreensão dos desafios, que nos são propostos pelos novos meios de produção e reprodução de imagens.

As figuras de linguagens: metáfora, metonímia, paronomásia, sinédoque, onomatopéia, eufemismo, sinestesia, hipérbole..., que já não mais se remetem, ao domínio do verbal, (ver, por exemplo, a pintura metonímica de um mestre como Sérgio Ferro), são evidências destas intercambialidades. E, tudo isto, quer dizer que: o veículo determina o tipo de feição da mensagem, pois o modo como é veiculada, isto é, o modo como é montada, é que proporciona, ao fim e ao cabo, o seu significado. E, esta, é uma estratégia de sobrevivência dos próprios códigos. É o antídoto, contra sua própria extinção. E não mais se considera apenas a idéia abstrata, como senhora toda poderosa, no comando de todos os meios, como aconteceu no cartesianismo. Daí nosso espanto, quando nos é dado o privilégio de encenações como "Dionysius" de Tadashi Suzuki, ou "A tentação de Santo Antonio", de Elizabeth Le Compte, pois estes espetáculos se reportam a uma visão de mundo desvinculada dos princípios cartesianos, com a qual ainda não estamos completamente familiarizados.

Traduzindo em "miúdos", estou me referindo ao que disse Marshall McLuhan: "os meios são as mensagens". São, por exemplo, as mãos, que irão, por fim, dar forma relaxada a um corpo tenso....

Estivemos, por obra e graça de uma lei protecionista, – a Lei de Reserva de Mercado da Informática –, distanciados destas "mãos", por longo tempo e, portanto, distanciados, – pelo menos em sua "praxis" –, da nova conformação que o mundo analógico assumia. E, de certa forma, privados de, ao menos podermos presenciar a crise, gerada pela introdução dos novos veículos, e seu subsequente transe transformador processado alhures. Isto porque, aos poderes instituídos parecia não interessar a difusão daquilo, que estava longe de seu alcance, isto é de sua compreensão, e possibilidade de governo e domínio. E isto não diz respeito somente ao instrumental de que fomos privados, mas também, à compreensão do novo ser analógico. As conseqüências de tais atitudes são funestas, como podemos detectar nas palavras da dupla de artistas espanhóis Alcalacanales: "se algo nos pode ser ensinado acerca da história das mudanças sociais, este algo, com certeza, esta atrelado ao descobrimento de novas ferramentas e máquinas, as quais não só obrigam o homem a se reciclar, ... como por fim, a gerar uma nova concepção do mundo, uma nova visão das coisas, e, portanto, a uma mudança nas estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais, o que implica em novas pautas de atuação e obriga a uma paulatina variação na concepção do trabalho."

Esta variação paulatina na concepção do trabalho, em muito, diz respeito ao necessário afinco e disciplina, no aprender os "arabescos" da "nova cartilha diagramática", para posteriormente, dela extrair os "ditongos", as "palavras", as "sentenças", as "histórias"...E, por fim. quando este tempo de aprendizagem se distanciar de seu mero teor funcional, – e se este "mergulho" for profundo –, nos levar ao alcance de seu teor artesanal das possibilidades de expressão artística, suas conjugações e construções mágicas inusitadas, dinâmicas, fictícias, irreversíveis e, ao mesmo tão próximas de nosso cotidiano... É o que faz. por exemplo, Bill Viola, em alguns de seus trabalhos, nos quais utiliza a contrapartida do meio videográfico, para imprimir-lhes um ritmo e velocidade não habituais. Viola, percebe e modifica as feições habituais da videografia, desacelera a quantificação e supersonicidade do meio...

Entre nós artistas pensantes, abnegados, talentosos e inventivos, que de há muito, já ultrapassaram o estágio de aprendizado funcional dos meios tecnológicos de ponta. Waldemar Cordeiro, Hélio Oiticica, Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros e Gerty Saruê, parecem ter sido os precursores destas práticas. Marcelo Dantas, Lucila Meireles, Jeanette Musatti, Luiz Duva, Denise Milan, Regina Silveira, Marcelo Nitsche, Betty Leirner, Carmela Gross, Jac Leirner, Julio Plaza, Giorgio Cliorgi, – e que me perdoem os que de momento não lhes recordo os nomes –, são seus "afilhados". E todos eles têm na concretude mágica de seus trabalhos, o alicerce tecnológico. E, ainda que os mesmos, não sejam ainda, completamente palatáveis para o gosto contemporâneo, nos profetizam sempre o nosso devir.

Por hora, ainda seguimos, no Brasil, e fora dêle, com afinco, palmilhando o legado da fotografia. É nesta área em que se pode perceber um sentido de representação "volumétrica", afinada com a nova visão do mundo. Isto se deve ao fato de termos assimilado, pelo menos em parte, os estatutos daquele veículo. Evidências de "extremado refino", (e ainda não muito degustáveis ao paladar do público e do mercado), são os trabalhos de Cássio Vasconcellos, Rubens Mano, Marcelo Lerner, Bettina Musatti, Rosangela Rennó e Marcos Ribeiro. Todos com estatura mais do que suficiente, para nos representarem, em qualquer panorama, que se construa em torno das expressões artísticas de teor tecnológico.

Estas anotações se remetem a uma visão restrita ao domínio do específico, ao domínio dos especialistas e investigadores das representações visuais, pois, em termos gerais, – (o que abraça também a percepção do leigo) –, ainda estamos separados,das tecnologias de ponta, por questões de ordem sintática e de poder aquisitivo, empecilho do qual, dará conta, a velocidade supersônica e avassaladora, com que estes próprios meios têm transgredido fronteiras. Esta voluta analógica, de rotações incalculáveis, nos acena a esperança de resgate do tempo perdido...

Finalmente, creio oportuno mencionar, que o termo tecnologia, foi aqui empregado, de acordo com a pauta estabelecida pelo editorial desta publicação, isto é, como habitualmente, hoje, é encarado o termo: um quase sinônimo de eletro-eletrônica. Visualizo o termo, de modo mais abrangente, dentro de um espectro, que vai do torno, passa pelos mais rudimentares processos de gravação e impressão de imagens e desemboca no computador. Afinal, o que há de novo sob o sol que nos protege e pune, e a "Graça", com que se renovam nossos mais ancestrais relatos, nos quais estão guardados, nossos mais delicados e sutis traços de identificação como espécie.

Prof. Dr. Luiz Guimarães Monforte