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Março - Sobre o que Não Esquecerei

Um mês para ser esquecido. Exercício fácil em um ano que se iniciou e parece terminar em verdadeira carnificina!
A modo de consolo, começo a “arrumar as minhas malas”. Nos meus arquivos encontrei uma dentre as muitas cartas que o meu professor Charles Arnold me enviou, uma a cada final de ano, todas primorosamente ilustradas com desenhos dos eventos cotidianos de cada ano. Poucos tiveram o privilégio de recebê-las. Aqui no Brasil, talvez Pietro Maria Bardi, quando em vida, tenha recebido alguma, eram conhecidos. Trata-se de uma tradição natalina americana antiga.

A carta que tenho em mãos não é de Natal é de recomendação, não tem desenhos mas contem palavras que me enternecem o espírito..Charlie, como eu o chamava, foi um verdadeiro Anjo da Guarda durante os anos em que estudei em Rochester.

Foi dele a sugestão de indicar Minor White para professor do Mestrado em Artes, e isto, no contexto fotográfico, significa: uma verdadeira revolução! Diz a lenda que, antes de fotografar qualquer coisa, Minor meditava profundamente.

Outra carta que vem conversar comigo, esta assinada por James La Villa-Havelin, poeta, curador e fã da literatura latino-americana, em resumo, um intelectual de primeira linha! A ele, por sugestão de Charlie caberia apresentar a emblemática exposição que trouxe ao MIS/SP sobre o meu trabalho e dos demais expositores. Mais do que um belo texto, James escreveu verdadeira profecia que se confirma a cada coleção que produzo. Reler aquelas cartas me ofereceu conforto.

Refleti sobre a vida daqueles artistas que mesmo em idade madura, sempre copiam e forçam a visibilidade de seus trabalhos. Se pudesse, e posso sugerir uma leitura a eles: Real Dreams de Duane Michals, uma espécie de história fotográfica em quadrinhos acompanhada de um texto manuscrito de rara espessura e dimensão. Caudaloso diz: “(...) simplesmente faça o seu trabalho e se ele for honesto, se transformará em Arte(...)”

Neste oceano de lembranças, “ouço” risos por um corredor imaginário, acho que é “Cesar” – apelido de um de nossos colegas -, ele diz: “não sabe fazer preto e branco, faça preto e branco grande. Não sabe fazer nem uma coisa nem outra, faça colorido e faça bem grande”. Lembro-me disto, quando vejo um detalhe de um dos meus trabalhos agigantado por outra pessoa, o resultado é patético! Talvez, seja apenas um jeito de me admirar...

Lembrei também do que me disse minha mãe no dia em que eu comemorava 60 anos de idade: “Junte-se aos que lhe querem bem!”. Hoje vejo nestas sábias palavras, belo revide a quem, munido de uma falsa e raivosa retórica, tentou me humilhar alguns meses antes... Ou teria sido ontem? Ou quando foi mesmo? Com certeza, terá sido desde quando me sonhou em ser!

“Tudo névoa de nadas(...)” do Haroldo.

Leio em Ishiguro, sobre uma comunidade medieval. Ela é acometida pelo que chamam “névoa”. Sobre tudo, têm meras e passageiras lembranças... Tão atual, a descrição! Me provoca calafrios!

Agora, em minhas mãos, envolto em fina seda plissada abro, o certificado de tombamento do grande painel de minha autoria que hoje pertence ao acervo do Museu Nacional da República Popular da China. Grande prazer!

Na memória o suave perfume da jornalista chinesa presente à coletiva..
Você se lembra do perfume de alguém?

“Sabor como em sapiens” – frase de minha autoria, tão copiada – foi ali que virei doutor!
Só um pode (d)escrever!