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Palavra Muda ou Pé na Senzala

Fui a uma festa. Há muito tempo. Celebrava-se a raça negra. Eita! E existe isso? Essa estratificação? Coisa de maluco, que sempre encontra um nomezinho matreiro para definir coisas que a bússola não consegue apontar a direção, como por exemplo, o que é moderno. Então vai lá no vestibular e responde aquela questão sobre Oscar Niemeyer e diz que ele é moderno. Moderno, cronologicamente falando, é coisa do século XVI (xisvi): dezesseis, tempos em que, diz a lenda, Cabral está com a bússola descalibrada e... e... "nos descobre!" É mais ou menos por aí que uma imaginária História da Psiquiatria tem um de seus capítulos mais hilariantes.

Vamos à festa: Entrada, salão de mármore branco onde são servidos `tijolos de paté" de diversos sabores que deveriam ser passados em torradinhas com umas pazinhas "chiques", que utilizadas não se sabia onde depositá-las pois latas de lixo, mesmo as mais chiques, não combinavam com o ambiente que tinha trilha sonora elevante: - planta muito utilizada na medicina popular, pois possui propriedades antiespasmóticas, diurética, carminativas e estomáquicas -, executada por violinos e violas à modo de um toque de um baile de Zefirelli, (coitado).

Adiante, uma exposição de objetos de "aromas" pouco recomendáveis, que a "jequice" dos "modernos" sempre gosta de um material sintético, uma bobagem plástica colorida, misturada a afazeres artesanais indígenas, cuja fonte nem mencionada é...

"E segue a valsa": olhos rodopiando, tremulando de fazer um Marcel ter alucinações. Chega-se a uma farta e grande mesa, em que são servidas saborosíssimas iguarias "afro-brasileiras". Jovens de gravatinha e alvas blusas explicavam aos convivas a origem de cada prato. E você alí, babando, de joelhos para que a explicação terminasse logo para poder degustar.

Então era esta a homenagem? Nada, v. já tinha passado pela homenagem lá fora, onde eram expostas as fotografias que compunham um calendário que se confundiam com os valets a manobrar os carros.

Bebida à rodo. Cardápio nada a ver. Melhor seria servirem sucos de frutas, mas os "modernos" preferiram misturar tudo o que é alcoólico e caro. Bem Brasil!

"A gafieira segue o baile calmamente, com muita gente dando voltas (sobre si mesmo) no salão(...)". Eis que então surge um belíssimo e musculoso negro, vestido de panos com estampas de inspiração afro, que vai passeando entre os comensais e a cada rápido cruzar de olhos bate duas metades de côco. Toc! toc! toc!

Hum! Acho que não entendi.... e lá vai ele.

Saídos do trabalho, eu e Fábio, um divertidíssimo porém discreto amigo, talvez, àquela altura dos acontecimentos, tivéssemos provado os canapés da entrada. e nos dado por satisfeitos. Lógico que ao não entender a presença do novo personagem, passamos a seguir-lhe os passos, até que compreendemos que ele estava convidando a todos para apreciar um show de percussão nos fundos do quintal. Isto mesmo, lá estavam os instrumentos de percussão à espera de um público que menos etilizado atendeu ao chamado dos côcos. Otimizando: uns vinte.

Haveríamos de participar fazendo alguns sons, mas o resultado era muito sem graça, pois que pedia volume. E foi justamente aí que conclui: "Salão de mármore, violino e paté na entrada e negro percussionista nos fundos do quintal: Casa Grande e Senzala!" Ao que Fábio, entre um riso maroto, perguntou: "Você está querendo dizer que de lá pra cá a sociedade brasileira não evoluiu nem um pouco?" Sacudi a cabeça que sim.

O inusitado sempre acontece: a "curadora" da festa estava atrás de nós. Ouviu. E discretamente disse: "tínhamos medo de que alguém entendesse assim, por favor, não comentem".

Milanos após aquela noite. Muito mais por meio de atos violentos, a sociedade brasileira começa a entender que se realmente existe uma estratificação racial, a nossa é a mais miscigenada do planeta! Todo mundo, olhos verdes, azuis, loiros ou oxigenados, alisados ou não, etc... tem sim uma marca: Pé na Senzala!

E segue a valsa! E SEGUE A VALSA? Infelizmente ainda estamos, TODOS, à mercê dos BATUQUEJÊS!

E, como as cores da Natureza se misturam em grande espetáculo orvalhado, (já 5 da manhã), vou lá assistir este tsunami de cores difíceis de nomear.
OBALUAÊ, que nos salve!

PS.: A Pandemia deve estar acabando. Voltei a escrever! Agora é laboriosamente lidar com todas as suas consequências, que não são poucas.