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Atget, pintor - Fotográfo da velha Paris

Por Stefania Brill

Não era caduco, nem miserável. Desconfiado? Sim, e ciumento de sua obra. Ele, o fotógrafo, o único ciente de seu valor. Não, também os pintores, companheiros, apreciavam seus “documentos”. Mas será que atrás desse interesse artístico não se escondia alguma arriére-pensée, alguma arapuca? Por que o pintor e fotógrafo Man Ray queria convence-lo a experimentar novas técnicas de impressão? Por que sugeria retrabalhar os negativos? É melhor guardar bem os clices e as fotos, e batalhar sozinho. Eugène Atget, desconfiado, ciumento, frio, objetivo e também sonhador. Só quem sonha pode encomendar um papel “timbrado” e ostentar orgulhosamente o título: auteur-éditeur d’un receuil photographique du vieux Paris. A fé inquebrantável que, um dia, seus documentos seriam apreciados e editados. Testemunhos de uma época.

Eugène Atget (1857-1927), fotógrafo francês, pintor das ruas de Paris. Silhueta arqueada, figura fincada nas ruas de sua cidade, a vaguear ao lado dos vendedores ambulantes, pequenos comerciantes, filles de joie, que formam a galeria de retratos atgetianos. A sua vida é pouco conhecida (profissionalmente, sim, era sucessivamente ator, pintor, fotógrafo), dando grande trabalho aos estudiosos. Um homem simples, apagado, que não deixa rastros. Vida despercebida. Mas Eugène Atget, homem como os outros, de vida e morte pacatas, ficou célebre. Post-morteml. É a redescoberta tardia, como tantas que acontecem. O encontro de Berenice Abbott, fotógrafa americana, com a obra de Atget. Paixão. Trabalho de longo fôlego. Resgatar os clichês, reproduzir, restituir o sopro da época. Amalgamar a técnica e a poesia. O projeto executado, fruto do trabalho conjunto da fotógrafa, de um colecionador (Julian Levy), de um museu (o Moma de Nova York), e dos pesquisadores da técnica da impressão fotográfica (Joel Snyder e Chicago Albumen Works).

Curioso, pode-se ver Paris em sépia, cinzelada, parecendo uma gravura fotográfica, sentir Paris cinzenta brumosa, envolta em poesia. O traço exato a transmitir um flou misterioso.

Pode-se ver? Sim, porque Atgel se deslocou até São Paulo, vindo diretamente de Nova York, graças à iniciativa do diretor do Museu da Imagem e do Som, Ivan Isola. Um marco na luta pela cultura fotográfica, um esforço para incentivar o espírito da conservação e preservação da imagem. Mas parece que o público não está interessado. Para quem viu a mesma exposição no Moma , em Nova York, as filas a batalharem pelo privilégio de um cara a cara com a obra de Atget, fica espantado com um cara a cara com as salas vazias (pelo menos na inauguração). O porquê da indiferença dos órgãos de cultura com a cultura nenhum representante na inauguração? O porquê do desinteresse da classe fotográfica com a imagem? A fotografia não é só técnica, mas a linguagem, a história e o além da superfície do papel fotográfico. Por que a falta de entrosamento entre os vários setores culturais? A exposição deveria interessar aos fotógrafos, sociólogos, historiadores, conservadores de museus. Cultura interdisciplinar, quando não há discípulos? A pergunta fica sem resposta.

A exposição está lá, de valor documental e estético, bela e didática, oferecendo várias leituras. Mostra parada, dependurada na parede: ruas, monumentos, povo, natureza. As vitrinas iluminadas com os famosos reflexos atgetianos a encaixarem gente, árvore, lampião, pedra dentro das portas e janelas: quadros surrealistas, telas imaginárias. O espectador tempera as imagens com a sua emoção, seu olhar, sua cultura. Ao lado, um audiovisual de autoria do fotógrafo Luiz Monforte: uma exposição “andante”, a passos lentos, como os de Atget. Um apuro na edição, as letras inconfundíveis de Monforte acompanhando o ritmo das curvas das escadarias. A música de Eric Satie, criando um clima envolvente, Monforte dirige a leitura, como faz toda obra seqüencial, mas não a limita. Pelo contrário, abre o campo. Faz um paralelo entre a obra de Atget e a dos pintores. Desfilam quadros de Matisse, Man Ray, Utrillo, Van Gogh e outros. Ele amarra a personalidade de Atgel-fotógrafo. Os batedores das portas lembrando os “batedores” do palco, anunciando início do espetáculo. Atget-fotógrafo continua a vida do palco. Só que o palco é a cidade de Paris, onde ele atua como ator e diretor, ao mesmo tempo.

A exposição remete aos fotógrafos-documentaristas brasileiros Marc Ferrez, Militão e tantos outros, resgatados pelo esforço dos historiadores (Boris Kossoy) e colecionadores (Gilberto Ferrez, Francisco Rodrigues), e colocados à luz do dia graças ao esforço de museus como o MIS , o Masp, o Lasar Segall e instituições culturais, como a Funarte ou a Fundação “Joaquim Nabuco”. Mas quantas coleções estão ainda guardadas nos baús das famílias, nos “baús” das instituições públicas. Guardadas e esquecidas, destinadas a desaparecer um dia. A morte irreversível da imagem quando não preservada, recuperada a tempo. E, depois, o caminho de volta não existe mais. A memória enterrada para sempre.

Fonte: in: Bril, Stefania. Atget, pintor-fotógrafo da velha Paris. O Estado de São Paulo.