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Uma arte, todas elas

Por Décio Pignatari

Há pouco mais de três décadas, publiquei num jornal paulistano um artigo intitulado “A arte gráfica e a outra”, onde procurava dar conta da situação das artes plásticas ante alguns novos impactos e desafios, como o boom da pop art americana e o acelerado aprimoramento das técnicas de reprodução gráfica resultado, entre outras coisas, da dinâmica das atividades publicitárias e do vulto dos investimentos nesse setor. Paralelamente, observava-se um outro fenômeno: o esgotamento do debate figurativo/não figurativo, que vinha agitando o mundo das artes por um período de sessenta anos (do cubismo a Pollock, Rothko, Max Bill, Volpi). Mas, a questão que mais nos interessa aqui, então abordada e agora retomada, não é necessariamente do tipo conflitante mas bifronte: produção/reprodução.

E não é nova, tampouco. Quando da clara configuração dos seus campos de atuação, no Renascimento, não se manifestou qualquer oposição antagônica entre digamos, a pintura e a gravura (em suas diversas espécies). Grandes pintores foram também grandes gravadores: é o caso de Dürer. Mas o elemento gerador de conflitos estava ao lado e nascera junto a imprensa de Gutenberg, com seus tipos móveis. O rápido crescimento dos índices de alfabetização criou um mercado em expansão para a palavra escrita que se tornou o signo informacional hegemônico. Uma imagem, então, não valia sequer cem palavras. O livro suscitou o jornal que suscitou a fotografia que suscitou o cliché que suscitaram a revista que ressuscitou todas as técnicas de reprodução e criou novas, dando início à formidável expansão informacional icônica que chega até nossos dias, quando as próprias letras transformam-se em figuras.

Meu herói preferido, nesta instância e circunstância, é Aloys Senefelder, o sofrível dramaturgo bávaro que, há duzentos anos, para perpetuar os próprios textos, inventou a litografia. Ora na moda, ora quase esquecida, os altos e baixos dessa técnica, dessa arte, desse midium surpreendente pela precisão de traço e tom, formam um pattern do bifrontismo arte/técnica, produtor/reprodutor, qualidade/quantidade que ainda é previamente elaborada sobre papel (prevalência de copistas sobre artistas), quando diretamente criadas na pedra (prevalência de artistas como Lautrec; Whistler; Redon, sobre copistas) a litografia criou a bifurcação entre a arte de produção e a arte de reprodução entre arte comercial e arte pura, entre massa e minoria de massa, entre mercado e cultura (não por acaso surgiu nos albores da Revolução Industrial). Todas a s técnicas e meios que surgiram depois, da fotografia à netelevisão seguem o mesmo padrão. O que mudou foi a mudança de ritmo da própria mudança, como diria Robert Oppenheimer: Hoje, o tempo é já.

Pois, do manual ao mecânico e deste ao eletrocolor, da foto à digitalografia, da figura à não-figura da construção à desconstrução, do geométrico ao informal, incluído um vice-versa geral, aqui está, em exuberante registro, o bissecular diálogo moderno entre produtor e reprodutor, obra de Luiz Monforte, quase-épico de mostruário das possibilidades gráficas de alta resolução da Takano, que assim cumprimenta seus clientes com um amplo e original gesto-leque de nobre sutileza, onde, por cima se narra, iconicamente, toda a história da arte do século XX.

É tal o virtuosismo sedutor dessas pranchas-páginas que o olhar como que renuncia o olho para metamorfosear-se nelas, não sem um surto de metavisão, música (as Variações Godberg, por Glenn Gould, p. ex.), trilha sonora. Nem se diga que a comparação não cabe: alí estão as peças publicitárias em comprimidos-temas, em chips-motivos, que se expandem em múltiplas direções e sentidos na espáciotemporalidade cromática.

Mestre das colagens barrocas em fotogravuras de ocultações simbólicas e dimensões muralistas, Monforte surpreende nesta obra folheada ao impor, em cada caso, um elaborado design, quer se trate de raptos informais, quer de espelhamentos geométricos. Se a precisão destas folhas é tal que as transforma em videofolhas digitais, igual é o ímpeto criativo de Luiz Monforte, que qualifica a quantidade, impregnando-a de significados que pré-retratam o futuro.