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Enigmas da Gangue de Novatos

Por Arlindo Machado

Com todas as chuvas e trovoadas, com as dificuldades habituais de se organizar um evento dessa extensão, a verdade é que a Quadrienal acont3eceu. Fruto do empenho do curador Paulo Klein, da Comissão de Arte do MAM e dos fotógrafos que entraram no espírito da coisa, enviando o biscoito mais fino de sua lavra, ela se faz presente ruidosamente em nosso panorama cultural, na tentativa de mostrar que existe uma fotografia brasileira. Muitos poderão questionar o recorte que se fez, os nomes que faltaram , os que estão a mais e até mesmo o portfólio com que cada convidado se faz representar. Mas, todos terão de concordar que há muito tempo não se via entre nós uma carga tão grande de informação e criatividade fotográficas concentradas num só lugar. Certo, há aquela parcela de fotógrafos que só joga em terreno conhecido e de rendimento garantido. Lugares comuns, como texturas de paredes simulando pintura abstrata, ainda são largamente explorados, pois muitos acham que competência técnica dispensa idéias férteis. Os mais badalados (Chico Aragão, Antônio Guerreiro, Vânia Toledo, Maureen Bisilliat) se acomodaram na fama e deitam na cama, como se a invenção fosse tarefa dos novatos.

Mas a gangue que entorna o caldo e desafina o coro cresceu muito de uns tempos para cá. É ela que dá colorido especial a essa Quadrienal, provocando sustos, detonando surpresas, desconcertando as regras e armando enigmas para a decifração do visitante. Quem tem antenas certamente vai sintonizar a incrível síntese do passado com o futuro: Cássio Vasconcellos, um menino de 19 anos, constrói paisagens urbanas insólitas, com a segurança de um veterano, enquanto o veterano Derli Barroso faz um trabalho de pura invenção, tão fresco que parece ter saído da cabeça de um garoto pós-waves.

Há pouca coisa documental nessa Quadrienal. Sintoma de que os fotógrafos já conseguem superar a crença ingênua num poder revelatório da câmera e ratam a fotografia como uma linguagem que é preciso dominar para tornar expressi8va. Retratistas como Eduardo Simões, João Paulo Farkas, Mário Cravo neto e Leonid Sreliaev não se descuidam do tratamento fotográfico, para poder exprimir uma visão pessoal do retratado. Nos momentos mais iluminados, pinta a lucidez de um Hugo Denizart, que estilhaça a imagem em fragmentos, como forma de tornar evidente a impossibilidade de dizer toda a verdade sobre o outro. Ou a agressividade de um Miguel Rio Branco, que intervém de forma brutal com suas carcaças de animais em decomposição, levemente retocadas de ocre, sobre passe-partout de papel reciclado, no melhor estilo punk.

Olhos inovadores, atentos para o não convencional, trazem à cena paisagens inéditas, onde os outros só conseguem enxergar o banal. Marcio Scavone, Arnaldo Pappalardo, Frederico Mielenhausen e Iatã Cannabrava realizam a vertigem dessa forma de olhar o mundo transfigurando os seus módulos perceptivos. Klaus Mitteldorf é o mais sensível ao jogo combinatório das cores, embora ainda limitado pelas convenções da pose publicitária. Piradíssimo, Antônio Saggese toma imagens borradas de uma orgia de corpos enlameados de tinta e as confina num cubículo claustrofóbico.

Agora, se o leitor, quer mesmo novidade, a sobremesa fica para o fim. Pelo menos três trabalhos fazem saltar o conceito tradicional de fotografia para além de todos os limites estabelecidos. Luís Monforte, em seus painéis conceituais denominados “Os Deuses e os Homens”, utiliza matrizes executadas em clichês verres (negativos em vidro) ou sensibiliza folhas de jornal e tecidos de algodão com emulsões férricas conhecidas historicamente como calótipo e cianótipo, ao mesmo tempo em que abole as fronteiras entre fotografia e artes plásticas. Kenji Ota faz um trabalho corrosivo no sentido próprio do termo (usa substâncias corrosivas para atacar a superfície do papel), além de utilizar os mais variados recursos óticos para quebrar a perspectiva e subverter os padrões de iluminação. E Sérgio Duarte constrói uma instalação de videofoto, explorando, de forma séria e irônica ao mesmo tempo, as possibilidades de tradução do suporte fotoquímico para linhas de varredura eletrônica. Não tivesse a Quadrienal tantas ouras atrações, só por estas três ela já teria mérito garantido.

Fonte: in Machado, Arlindo. Enigmas da gangue de novatos. Folha de S. Paulo