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O Emocional na Obra de Monforte

Por Stefania Brill

(Texto originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo)

E a fotografia? Onde está? Provavelmente esta será a pergunta formulada pela maioria dos espectadores diante do trabalho de Luiz Monforte, um livro visual aberto, montado página por página pela competente equipe do MIS (“Luiz Monforte conta Gilgamesh”, promoção Cigna Seguros, Secretaria de Estado da Cultura, MIS, av. Europa, 158, até o dia 28 de novembro).

É pergunta de um olhar acostumado a compartimentar: aqui a fotografia, aí a pintura, lá a literatura. Campos delimitados. E se o autor quiser extrapolar e amarrar tudo junto? O direito é seu.

É isso que faz Luiz Monforte através deste “livro” organizado em quadros compostos de texto, desenho, aquarela xerox e...fotografia, alternativa.1

Ver o texto, a caligrafia feita a bico-de-pena que segue um ritmo próprio: invasora, ordenada, comportada, modesta, avassaladora. Ler as imagens: esquecer a história e deixar-se arrastar pelo mistério, pela emoção. E só depois, como o fez o autor, incorporar tudo, num só.

É curioso. Parece que tanto o processo criativo do fotógrafo (ou comunicólogo visual, como ele próprio se define) como o caminho criativo da leitura sofrem a mesma dicotomia dos heróis da estória: corpo e alma, cérebro e emoção. Dicotomia e síntese, as duas.

A história é antiga, a epopéia do primeiro herói trágico de mitologia faz 5000 anos, na Mesopotâmia; a história é eterna. E mesmo se o espectador, por opção própria, iniciar a leitura só através das imagens, já sentirá a magia que emana dos quadros. Leitura emocional; amor, raiva, liberdade, opressão, sedução, força. Emoções que entram pelos poros através da cor, do traço, da forma. É técnica que aguça a sensibilidade; é técnica a serviço da sensibilidade de processos. Não gratuitamente, não para abafar com “eu sei!”. Mas, ao cultivar as diferentes formas de expressão, ele as torna servos dos seus sentimentos.

Então, a fotografia em preto e branco, ponto de partida, apenas adquire a cor. Mas não é imagem colorida; é imagem de “cor fotográfica” obtida através das superposições das camadas de emulsão, das camadas dos pigmentos. É a cor que adquire texturas ou dissolve-se em manchas vazadas; a cor que muda o corpus-matéria do papel fotográfico e, tornando-o maleável , dota-o da terceira dimensão: cor-escultura. Luiz é realmente corajoso. Às vezes, frente à imagem já pronta, uma imagem só, fruto de duas semanas de trabalho do laboratório, ele não se dá por satisfeito: - não é bem isso, é preciso de mais ar, é preciso acentuar os contornos. Então a tesoura entra em ação, decidida. Luiz sabe que um movimento brusco demais e... o trabalho de duas semanas será perdido. Mas ele arrisca; finalmente o que conta é levar as emoções ao espectador, o futuro dono da obra.

A fotografia, partindo do real e interpretando-o, adquire finalmente a sua forma definitiva, adquire a sua linguagem. A sedução? Não é um olhar só. Sedução são cores num crescendo das nuanças. A sedução exige acessórios provocantes; Luiz veste o olhar já colorido de uma renda-tentação. A morte? Não é violência (é só o vermelho que sangra através da imagem). A morte é o relembrar do passado; a projeção do tempo no espaço fotográfico; flagrantes visuais que aqui, na imagem, se aglutinam através da memória sintética.

É difícil encontrar no trabalho de Luiz Monforte as fotografias de linguagem imediata; existem sim, mas adquirem a força e o significado só “em relação a ...”; nunca soltas. A floresta não é a que simplesmente cresce, respira e deixa respirar; é floresta metafora, feita de armas. Agressiva – diz Luiz, a qual a gente está exposta todo dia. Floresta simbólica feita de fotos que, originalmente horizontais, por inversão e repetição, transformam-se em linhas verticais; árvores-metáforas.

“Luiz Monforte conta Gilgamesh” é a história eterna do ser humano: do corpo e da alma, do instinto e do cérebro. “Os mitos só tratam da verdade, daquilo que realmente acontece. A realidade, no caso, é a realidade simbólica” – diz no prefácio Frederico Lucena de Menezes. Aqui a realidade é mito, é condição humana, é reflexo da personalidade do autor: instinto (Enkidú) e cérebro (Gilgamesh). Auto-retrato, sem dúvida. Transparente (é lindíssimo o fotolito do rosto que, fotográfico, parece feito com carvão), deixa transparente os sentimentos do artista; feito com traço solarizado, esboça a personalidade “pensante” cercada de rostos-manchas, rostos de grito “baconiano”, calado. Grito de quem vive “oprimido pelo vazio”, como vive e morre Enkidú.

A escrita abraça as formas; a foto conta estórias. E o público? Qual será o seu envolvimento? Luiz Monforte não quer o público que passa e esquece, público que “não é pego pelo cangote pela obra de arte”. Ele inverte os papéis; não é mais o público a exigir só do artista; é o artista a exigir do público. Ele, o autor, já trabalhou bastante: leu, traduziu, sentiu, pensou. Colheu as imagens, as de hoje, procurou as outras no arquivo da memória (onde mesmo guardei aquela foto do trabalho de Marcel Duchamp que tirei lá no Museu de Filadélfia? É isso aí, é esta luz que eu quero, a que insinua apenas, misteriosa). Ele desnudou seus pensamentos, suas emoções. Agora é a vez do público trabalhar: mergulhar na “alquimia da luz”, na alquimia dos pigmentos, na magia das palavras. Acionar o cérebro, percepção, emoção. Cativar a obra e se deixar cativar por ela. Torna-la sua. Desejo de todo artista.

Fonte: in: Bril, Stefania. O emocional na obra de Monforte. O Estado de São Paulo.